Thursday, November 15, 2007

Lei de Trabalho

A parte terceira de O Livro dos Espíritos apresenta as elucidações dos Benfeitores acerca das leis morais. Essas, no contexto da Doutrina Espírita, são consideradas leis naturais. Portanto, a separação realizada pelo Codificador, apartando fenômenos físicos de fenômenos morais, é simplesmente didática, porque sua raiz é comum: a "Inteligência suprema, causa primária de todas as coisas". Na referida seção, no capítulo III, Allan Kardec ilustrou o resultado do seu diálogo com a equipe do Espírito de Verdade sobre a lei do trabalho. As duas primeiras perguntas formam uma interessante introdução ao assunto:


674. A necessidade do trabalho é lei da Natureza?
O trabalho é lei da Natureza, por isso mesmo que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais, porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.
675. Por trabalho só se devem entender as ocupações materiais?
Não; o Espírito trabalha, assim como o corpo. Toda ocupação útil é trabalho.



No processo de compreensão das coisas, em que o Espírito se põe a dialogar com a matéria, o trabalho consolida-se como instrumento de seu aprimoramento intelecto-moral. Nos reinos inferiores, o então princípio espiritual assimila elementos das leis divinas por intermédio de ações automáticas vivenciadas através das diversas organizações corpóreas que ocupa e, a cada desagregação de algum desses entes, volta ao meio de cujo qual foi tomado, com o acréscimo da elaboração sofrida. Não se sabe precisar ao certo, mas, num dado momento, sofre uma transformação e individualiza-se, ensejando a ocupação do equipamento orgânico humano, o uso progressivo e prioritário da inteligência, em detrimento dos instintos, o desenvolvimento do livre-arbítrio e o conseqüente aprendizado moral.

Nesse percurso evolutivo, o invólucro semi-material do Espírito, chamado por Kardec de perispírito, especializa-se em suprir as necessidades relacionadas à sobrevivência e à perpetuação da espécie humana, engendrando automatismos que serão traduzidos nas ações dos sistemas nervoso simpático e nervoso parassimpático, liberando o Espírito para o uso e desenvolvimento da razão, das emoções, dos sentimentos. Dessa forma, quando os Espíritos assinalam, por abstração, no referido quesito 675, o trabalho intelectual da individualidade espiritual, sublinhando o trabalho material como sendo do corpo, expressam essa realidade evolutiva do perispírito. Este, por sua vez, magnetizando o ente encarnado ou desencarnado e jungindo-o, por conseguinte, à matéria, propicia a transmissão de informações entre as duas dimensões, corpórea e incorpórea, e o aprimoramento da consciência individual, sede da lei de Deus.
O trabalho proporciona ao Espírito, ao longo das reencarnações, firmar o seu senso do EU, compreender o ambiente em que está e suas leis correspondentes e, assim, compreender o próprio Deus, tornando-se, ao fim da jornada, plenamente feliz. Daí ser um contra-senso atribuir ao trabalho a sua dimensão de castigo divino, tão propalada pelas religiões. Em verdade, essa percepção do trabalho como punição impingida por Deus ao homem e à mulher pode ser creditada ao Mito do Pecado Original, da tradição judaico-cristã e ao Mito de Sízifo, da mitologia grega e à cultura da escravidão, entre outros elementos da formação antropológica, psicológica e sociológica das almas. Uma excelente metáfora dessa ótica punitiva é o tripalium, instrumento de trabalho usado na colheita de grãos pelos romanos, mas também de tortura. Esse artefato é resultante da maneira de se pensar e sentir o trabalho como uma punição do Criador. E reforça a falsa visão da cultura helenista de se considerar como trabalho somente as atividades braçais, destinadas aos escravos. Os pensadores eram meros ociosos. (E alguns, pela esquisitice de suas teses, eram bem isso mesmo.)
Hodiernamente, com a mudança radical dos fatores clássicos de produção econômica, que elevou o conhecimento ou capacidade intelectual ao patamar de principal vetor de produção, o trabalho foi ressignificado, não obstante ainda seja impingido, à feição de tortura, a muitos explorados. Bem como artifícios intelectuais de exploração impõe-na sob a máscara torpe da glamourização a sujeitos viciados em trabalho, os workaholics, e outros tantos envaidecidos pela sua ilusão de importância face a organizações que os descartam, muita vez, quais números sem maior significado humano, desde que não atendam mais às necessidades daquelas.
Consideram-se, por exemplo, homens de sucesso executivos que percebem mensalmente milhares de dólares, mas que necessitam, para tanto, trabalhar 12 horas por dia, sacrificando o convívio familiar. A alta conectividade permitida pela Informática tornou a sociedade célere na transmissão de informações; catapultou ainda mais o capitalismo; implodiu barreiras alfandegárias; permitiu a permeabilização mútua de culturas diversas. Por outro lado, a sociedade, utilizando irresponsavelmente esses recursos, produziu mais dados que a capacidade humana de absorção, onerando, com a ideologia do consumo desenfreado, as consciências incapazes de dar conta de toda essa miríade de bits; acirrou as desigualdades sociais; roubou a identidade aos indivíduos. Além disso, esses mesmos aparelhos tecnológicos, como os celulares, os palmtops, notebooks etc., promitentes de maior conforto no desenvolvimento das tarefas aos profissionais, converteram-se em instrumentos de controle da vida destes pelas empresas, que ora exercem um papel controlador outrora previsto e exercido pelo Estado, de acordo, por exemplo, com os pensamentos de Thomas Hobbes (1588 - 1679) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 - 1831) e perpetrado pelas famigeradas ditaduras já vistas na História.
O conceito de trabalho está em crise porque equivocada é a noção de matéria que entretemos em nossas mentes. Ainda imaginamo-la criada por Deus, ou não, para a satisfação de nossos desejos, ilimitados e irrefreáveis. A matéria, no contexto da Criação, "é o laço que prende o Espírito", enquanto este ainda necessita do périplo realizado nos incessantes mergulhos na dimensão corpórea, aprimorando a racionalidade e atingindo a angelitude, pelo exercício dos valores morais dos quais, entre nós, Jesus foi o sagrado portador.
Neste contexto, o trabalho, considerado como toda atividade útil, caracteriza-se por ser instrumento causal de bem estar ao ser humano, à sociedade, ao meio e a todos os seres viventes. "Meu Pai trabalha sempre, e eu trabalho também", assevera Jesus (João, 5.17), contestando a crítica que lhe foi feita por curar no sábado. E Jesus "é o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem para lhe servir de modelo e guia", afirma a Doutrina Espírita. Sua unidade com o Pai demonstra seu nível pleno de consciência das leis naturais.
O trabalho, pois, aperfeiçoando a consciência, será tanto mais fonte de alegrias para o ser, quanto mais este melhor compreender os divinos decretos, resumidos pelo Mestre em "amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo". Quanto mais trabalhar, mais alargará os horizontes de sua consciência. Quanto mais consciente for, mais gozará de livre-arbítrio. O trabalho liberta o Espírito.