O principal mérito de Allan Kardec na construção de O Livro dos Médiuns, no atinente ao contributo espírita à compreensão da fenomenologia mediúnica, foi a demonstração lógica e experimental da naturalidade dos fatos estudados pelo Espiritismo. Nada obstante se encontrem registros sobre a mediunidade em variadas épocas da Humanidade, sua fácies histórica, eivada de preconceitos engendrados pelos pensamentos mágico e mitológico, inibiu a sua apreciação complexa, até o Século XIX, com a publicação da referida obra, em 15 de janeiro de 1861.
O cuidado didático-metodológico do Codificador fê-lo dividir os assuntos em duas partes: a primeira, intitulada “Das Noções Preliminares” e a segunda, “Das Manifestações Espíritas”. Kardec promove a adaptação gradativa do leitor à temática do livro, a partir da apresentação e análise de conceitos doutrinários importantes à compreensão da mediunidade, a fim de precatar os “médiuns e evocadores” quanto a experiências destituídas desse imprescindível lastro cognitivo.
De forma coerente, Allan Kardec inicia o percurso lógico de compreensão do fenômeno a partir da inquirição “Há Espíritos?”, que nomeia o primeiro capítulo. Nada mais justo, já que o Espírito, juntamente com a idéia de Deus como “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”, é o eixo estruturante do conhecimento espírita. Além do que, não faria o menor sentido analisar-se a faculdade mediúnica sem a aceitação da existência do Espírito, visto como ser inteligente da Criação e co-criador do Universo. Esta matéria representa a primeira e poderosa pancada desferida pela Doutrina Espírita nos alicerces do edifício fantástico que até então albergara a mediunidade e seus epifenômenos. Mas não o único.
No capítulo seguinte, “Do Maravilhoso e do Sobrenatural”, o Mestre de Lyon alude à predileção das inteligências imaturas pelas concepções sobrenaturais acerca da comunicabilidade dos Espíritos, refertas de elementos imagéticos, muita vez realçados à custa da desejável apreciação prioritária do seu conteúdo. Os argumentos ínsitos nos itens componentes deste trecho demonstram a imprescindibilidade de se conceder à mediunidade a naturalidade que lhe é cabível, a fim de se poder estudá-la melhor. Contudo, havia a necessidade de se explicitar como esse estudo deveria ser feito. É o que fará no terceiro capítulo desta parte: “Do Método”.
A nota marcante do Codificador quanto ao seu método de estudo diz respeito ao educando espírita. Kardec elucida os diferentes níveis de consciência dos espiritistas face à própria Doutrina que professam. Nos itens 28 e 29, Kardec descreverá os “espíritas imperfeitos”, os “experimentadores”, os “exaltados” e os “perfeitos” ou “cristãos”. Esses indivíduos variariam da postura contemplativa, passando pela fria experimentação e o fanatismo, até a de lídimos seguidores do Cristo. Os últimos seriam aqueles que entendem a vinculação do Espiritismo “com os mais graves problemas sociais” e o ensino moral do Cristo como único capaz de resolvê-los. Finalmente, o Prof. Rivail encerra a primeira parte da obra dando luz a vários sistemas explicativos criados para responder às questões impostas pelos insólitos produtos das ações dos Espíritos sobre os médiuns. Sistemas negativos ou afirmativos, uns são marcados pela seriedade investigativa, outros chegam ao nível da bizarrice.
Alguns inserem na vala comum da impostura todos os fenômenos, médiuns e experimentadores, tratando os últimos como charlatães; outros consideram a mediunidade fruto de alucinações e desequilíbrios mentais; o do músculo estalante talvez seja o de maior extravagância, posto apresentar a enormidade anatomofisiológica de ser o músculo curto-perônio o responsável pelas respostas inteligentes dadas pelas mesas aos circunstantes das reuniões para assistência às tableau girardin.
Depois de pavimentar, com as diretrizes epistemológicas espíritas, uma estrada segura de compreensão doutrinária, Kardec escreverá trinta e dois capítulos concernentes às manifestações propriamente ditas, incluindo o último, “Vocabulário Espírita”. Os trinta e um primeiros são resultantes dos experimentos criteriosamente conduzidos por Allan Kardec, exaltando a necessidade de se conciliar senso de observação e senso ético cristão no trato com o nobre fenômeno da comunicação intermundos.
O Livro dos Médiuns, portanto, é este compêndio representativo da notável revolução paradigmática dos temas que apresenta. Na sua totalidade, o seu potencial heurístico permanece ainda inabordável, haja vista a vastidão do território psíquico que examina e que os pensadores e cientistas dedicados a esses estudos mal começaram a mapear.
Essa belíssima obra, entretanto, institui-se como a melhor bússola para fazê-lo. Ela conseguiu indicar que tais acontecimentos situam-se na sagrada intimidade da Natureza.