Saturday, August 10, 2013

Fascinação, Distúrbio do Autoconhecimento

A obsessão é um escolho da mediunidade resultante de particular desarmonia existente entre a consciência, individual e/ou coletiva, e a Lei Divina. De acordo com o capítulo XXIII de O Livro dos Médiuns, pode ser dividida em três tipos, conforme o nível de comprometimento da vontade: a obsessão simples, a fascinação e a subjugação. Em especial, a fascinação é o processo de tipo mais complexo, em função de ser uma enfermidade que atinge o psiquismo por meio de sofismas, ludíbrio, crenças, falácias, distorções e ilusões outras. Aliás, mesmo as inteligências melhor guarnecidas de instrumentos operatórios aparentemente capazes de enfrentar os desafios cotidianos podem se revelar frágeis para enfrentar a fascinação, desde que viciadas por um posicionamento existencial e, por conseguinte, moral, que difira da sua própria realidade ontológica, a de Espírito.  
O filósofo francês René Descartes (1596 – 1650) asseverou com muita propriedade, no seu Discurso sobre o Método, que “o bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que têm”. A declarada auto-suficiência intelectual dos que assim pensam, neste caso, longe de ser um indicativo de plena ciência de sua capacidade, é grave sinal de arrogância e vaidade. Sob a influência de tal modo de pensar acirram-se o orgulho e o egoísmo, situando-se o detentor destes vícios morais em franca posição de vulnerabilidade espiritual. Do ponto de vista do conhecimento da própria mediunidade e do seu exercício, mais ainda há que considerar o médium os efeitos deletérios dessa atitude presunçosa. 
A condição mediúnica aprofunda o mergulho do ser num oceano de ondas que transportam informações as mais diversas: idéias, emoções, sentimentos, valores morais etc. Perceba, ou não, conscientemente, o médium. A atração vibracional existente entre esses elementos e aquele que os percebe ocorre sob o diapasão da lei de afinidade, o que significa dizer que a assimilação dos materiais veiculados no universo supramencionado respeita o perfil biopsicossocioespiritual do percipiente. Sob esse aspecto, a condição intelectual e afetiva individual é da mais alta relevância na compreensão de como o processo da fascinação acontece.
As personalidades desequilibradas emocionalmente, as vaidosas, as orgulhosas e as esquizóides são as que melhor se prestam à influência da obsessão por fascinação. Kardec descreve os Espíritos fascinadores como manipuladores intelectualmente refinados que, para darem curso às suas perseguições, costumam estudar minuciosamente os seus futuros alvos. De acordo com a fragilidade apresentada pela sua “vítima” é que traçarão a sua estratégia de influência. Como o autoconhecimento não é devidamente valorizado e sua prática não totalmente disseminada no seio da Humanidade, a deficiência ou a inexistência do seu exercício serão a maior fonte dos ruídos comunicacionais aos quais os indivíduos estarão expostos, e que irão constrangê-los. Tais pessoas poderão ter os valores éticos tisnados por essas mesmas características, adotando posturas radicais perniciosas, ainda que sejam elas diametralmente opostas uma à outra.
Há os que detêm um sofisticado acervo de justificativas para as suas ações, alegando, inclusive, a sua inferioridade existencial, moral e intelectual. Argumentam que, sendo seres imperfeitos, impossível lhes é alterar essa condição, responsabilizando-se pelo seu aperfeiçoamento, possibilidade esta, inclusive, para eles, inexistente. Por outro lado, há os que adotam a culpa como postura psicológica, não conseguindo valorizar os seus avanços porque não os considera tão importantes quanto os seus defeitos. No conjunto das desculpas e das auto-acusações mais ferozes, filhas diletas do egoísmo e do orgulho, estão os conteúdos psíquicos que predispõem os que as vivenciam ao sofrimento provocado pela fascinação. O indivíduo não se enxerga tal qual é, e isso o fragiliza. A propósito, o avarento se considerará precavido, o covarde, prudente, o temerário, corajoso, o recalcitrante, determinado etc.
O observador que intente dominá-lo, fazendo-o desenvolver condutas esdrúxulas, usará tais dificuldades como via de acesso à sede consciencial do futuro dominado. Pessoas jactanciosas e/ou presunçosas perder-se-ão numa barafunda de conceitos e comportamentos bizarros que irão expô-las e os que as cercam a terríveis constrangimentos. Caso seja um racionalista ególatra, por exemplo, poderá ser induzido a pensar que suas discussões pueris mereceriam status de filosofia de alta relevância e, ele próprio, o de grande polemista. Desarvorados emocionalmente, muitos sofrerão os efeitos desagradáveis da dissonância cognitiva na apreciação de alguns quadros: um ciumento não conseguirá facilmente interpretar como desinteressadas as manifestações de afetividade daquele ou daquela que é objeto do seu ciúme para com outras pessoas ou alguma em particular. Observá-las-á através de um prisma opacificado pela sua insegurança emocional.
Os que desejarem precatar-se dos efeitos constrangedores da fascinação deverão buscar no autodescobrimento, no estudo e prática do Evangelho, na prece, na meditação, no conhecimento da mediunidade e na prática incessante da caridade, o imprescindível lastro da sua reforma íntima. Para tanto, será necessário adotar a humildade como bússola, além de corrigir em si mesmo toda manifestação hipócrita ou que à hipocrisia possa levar, lembrando da lição imortal de Jesus: “Aquele que ouve estas minhas palavras, e as pratica, assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha” (Mateus 7.2). Buscar o entendimento da Divina Vontade, por intermédio de um pensar humilde e reverente, e aceitá-la é condição fundamental para a manutenção do equilíbrio. A maior superação a que deve aspirar a alma é a do próprio ego e suas necessidades fantasiosas. A esse respeito, convém lembrar um interessante trecho da resposta ao quesito 923 de O Livro dos Espíritos, dada pelos Imortais a Kardec: “O homem criterioso, a fim de ser feliz, olha sempre para baixo e não para cima, a não ser para lançar a sua alma ao infinito”. Nem desdém pelo sofrimento alheio nem inveja dos que lhe estão acima, mas tão-somente humildade. E humildade só se conquista por intermédio do conhecimento de si mesmo.
Dito isto, o convite da Boa Nova à prática da caridade, à busca dos valores espirituais em prevalência aos do materialismo, à tranqüilidade consciencial, ao silêncio meditativo, ao perdão, à justiça verdadeira, ao Amor, perenemente desafia a Humanidade aos esforços de renovação. É preciso destituir as expressões intelectuais do ser humano de toda impregnação orgulhosa e egoísta, bem como as afetivas, da pusilanimidade. Jesus espera dos seus aprendizes determinação e fidelidade à sua proposta, mesmo considerando as quedas que ocorrerão ao longo do caminho. O que Ele nos oferece em troca é o tesouro do autoconhecimento, da Verdade que nos libertará. 

Friday, July 15, 2011

Mediunidade, Conhecimento, Evolução: Os 150 Anos de O Livro dos Médiuns

O principal mérito de Allan Kardec na construção de O Livro dos Médiuns, no atinente ao contributo espírita à compreensão da fenomenologia mediúnica, foi a demonstração lógica e experimental da naturalidade dos fatos estudados pelo Espiritismo. Nada obstante se encontrem registros sobre a mediunidade em variadas épocas da Humanidade, sua fácies histórica, eivada de preconceitos engendrados pelos pensamentos mágico e mitológico, inibiu a sua apreciação complexa, até o Século XIX, com a publicação da referida obra, em 15 de janeiro de 1861.

O cuidado didático-metodológico do Codificador fê-lo dividir os assuntos em duas partes: a primeira, intitulada “Das Noções Preliminares” e a segunda, “Das Manifestações Espíritas”. Kardec promove a adaptação gradativa do leitor à temática do livro, a partir da apresentação e análise de conceitos doutrinários importantes à compreensão da mediunidade, a fim de precatar os “médiuns e evocadores” quanto a experiências destituídas desse imprescindível lastro cognitivo.

De forma coerente, Allan Kardec inicia o percurso lógico de compreensão do fenômeno a partir da inquirição “Há Espíritos?”, que nomeia o primeiro capítulo. Nada mais justo, já que o Espírito, juntamente com a idéia de Deus como “inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”, é o eixo estruturante do conhecimento espírita. Além do que, não faria o menor sentido analisar-se a faculdade mediúnica sem a aceitação da existência do Espírito, visto como ser inteligente da Criação e co-criador do Universo. Esta matéria representa a primeira e poderosa pancada desferida pela Doutrina Espírita nos alicerces do edifício fantástico que até então albergara a mediunidade e seus epifenômenos. Mas não o único.

No capítulo seguinte, “Do Maravilhoso e do Sobrenatural”, o Mestre de Lyon alude à predileção das inteligências imaturas pelas concepções sobrenaturais acerca da comunicabilidade dos Espíritos, refertas de elementos imagéticos, muita vez realçados à custa da desejável apreciação prioritária do seu conteúdo. Os argumentos ínsitos nos itens componentes deste trecho demonstram a imprescindibilidade de se conceder à mediunidade a naturalidade que lhe é cabível, a fim de se poder estudá-la melhor. Contudo, havia a necessidade de se explicitar como esse estudo deveria ser feito. É o que fará no terceiro capítulo desta parte: “Do Método”.

A nota marcante do Codificador quanto ao seu método de estudo diz respeito ao educando espírita. Kardec elucida os diferentes níveis de consciência dos espiritistas face à própria Doutrina que professam. Nos itens 28 e 29, Kardec descreverá os “espíritas imperfeitos”, os “experimentadores”, os “exaltados” e os “perfeitos” ou “cristãos”. Esses indivíduos variariam da postura contemplativa, passando pela fria experimentação e o fanatismo, até a de lídimos seguidores do Cristo. Os últimos seriam aqueles que entendem a vinculação do Espiritismo “com os mais graves problemas sociais” e o ensino moral do Cristo como único capaz de resolvê-los. Finalmente, o Prof. Rivail encerra a primeira parte da obra dando luz a vários sistemas explicativos criados para responder às questões impostas pelos insólitos produtos das ações dos Espíritos sobre os médiuns. Sistemas negativos ou afirmativos, uns são marcados pela seriedade investigativa, outros chegam ao nível da bizarrice.

Alguns inserem na vala comum da impostura todos os fenômenos, médiuns e experimentadores, tratando os últimos como charlatães; outros consideram a mediunidade fruto de alucinações e desequilíbrios mentais; o do músculo estalante talvez seja o de maior extravagância, posto apresentar a enormidade anatomofisiológica de ser o músculo curto-perônio o responsável pelas respostas inteligentes dadas pelas mesas aos circunstantes das reuniões para assistência às tableau girardin.

Depois de pavimentar, com as diretrizes epistemológicas espíritas, uma estrada segura de compreensão doutrinária, Kardec escreverá trinta e dois capítulos concernentes às manifestações propriamente ditas, incluindo o último, “Vocabulário Espírita”. Os trinta e um primeiros são resultantes dos experimentos criteriosamente conduzidos por Allan Kardec, exaltando a necessidade de se conciliar senso de observação e senso ético cristão no trato com o nobre fenômeno da comunicação intermundos.

O Livro dos Médiuns, portanto, é este compêndio representativo da notável revolução paradigmática dos temas que apresenta. Na sua totalidade, o seu potencial heurístico permanece ainda inabordável, haja vista a vastidão do território psíquico que examina e que os pensadores e cientistas dedicados a esses estudos mal começaram a mapear.

Essa belíssima obra, entretanto, institui-se como a melhor bússola para fazê-lo. Ela conseguiu indicar que tais acontecimentos situam-se na sagrada intimidade da Natureza.

Saturday, August 30, 2008

O Ensino Moral do Cristo: Os Discípulos: Sal da Terra e Luz do Mundo

“Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais serve, senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma casa edificada sobre o monte. E não se acende uma candeia e põe embaixo do alqueire, mas no velador, e ilumina a casa inteira. Assim, pois, resplandeça a vossa luz diante dos homens, a fim de que vejam as vossas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.” (Mateus 5.13-16)

Na síntese do seu ensinamento moral, que é o Sermão da Montanha[1], usando as metáforas “sal da terra e luz do mundo” para caracterizar os discípulos do Evangelho, Jesus leciona aos seus acólitos, presentes e futuros, qual deve ser a postura desses no uso da mensagem que lhes foi dada. Faz-nos reflexionar sobre a Boa Nova agindo na intimidade de nossa consciência e promovendo o progresso intelecto-moral. À medida que ela se burila, a compreensão dos ensinamentos do Cristo tomam nova feição, descortinando horizontes novos de entendimento, mas suscitando, outrossim, as responsabilidades correlacionadas ao auto e ao halo-descobrimento.
A tendência do aluno é sair da postura contemplativa, passando pela de tarefeiro, muitas vezes de início autômato, até a daquele que, além de pensar, fazer e sentir, é. Como diz o filósofo Huberto Rohden: “Ser é mais importante que fazer”. No entanto, convém salientar que o ser resulta do que pensa, do que sente, do que faz, em suma, do seu agir, conforme a concepção aristotélica do conhecimento
[2]. Tudo isso numa perspectiva complexa, não-linear.
Só atingiremos um nível de compreensão plena do Evangelho, na medida em que nos entregarmos ao estudo, meditação e prática das lições nele exaradas, sob a orientação do Cristo, em espírito e verdade.
Para que essa orientação aconteça em termos práticos, no entanto é mister retirar-se os óbices da vaidade, do orgulho, promovendo em si mesmo a humildade. Não a humildade como negação dos próprios talentos e valores individuais, mas entendida como aquela que se manifesta na vinculação das competências intelecto-morais à inspiração do Mestre. Nada melhor para promovê-la que o serviço abnegado no Bem. “O amor cobre a multidão de pecados”, proclamará o apóstolo pescador de almas.
Ao perceber-se como “sal da terra e luz do mundo”, o discípulo sincero de Jesus encontra a sua destinação: a de ser co-criador do Universo, a partir de seu lócus imediato de atuação. Deverá impregnar com o seu sabor (palavra que tem a mesma raiz etimológica que possui a palavra saber) e com sua luz (semiologicamente entendida como conhecimento ou compreensão) tudo e todos que o rodeiam, deixando revelar o Cristo que começa a ser gestado em uns, que se encontra entre a infância e a adolescência em outros e plenamente maduro e vigoroso noutros mais aprendizes da Boa Nova. É esse Cristo vivo, luz da consciência individual e coletiva, que deve ser o anseio de todo coração que se cristianiza.
O olhar do cristão, tendo a sua acuidade aprimorada pelas lentes de Jesus, antecipa as misérias e belezas humanas, indo ao encontro dos infortúnios ocultos e exaltando a Estética elementar da Criação, jacente no recesso de todas as coisas. O exercício da caridade, da promoção da paz, do Bem e do Belo aperfeiçoa-se por intermédio desse profundo mergulho nas águas cristalinas, mas misteriosas, do Evangelho, bem como na profundidade abissal da própria alma que imerge. É um movimento de mão dupla, para dentro e para fora de nós.
Os veros discípulos de Jesus serão aqueles que mais amarem, que atenderem aos pequeninos, que fraternalmente se buscarem, que tornarem cada vez mais abrangente em suas ações, pensamentos e palavras, o conceito de “próximo”. É por essa razão que Allan Kardec argumenta ser a melhor religião a que conseguir formar maior número de homens de bem. A tarefa de religar criatura ao Criador deve ser a de educar o ser humano, com vistas à concretização plena de suas pontencialidades espirituais. Nunca é demasiado repetir, em nosso âmago, o eco multimilenário do Cristo: “Vós sois o sal da terra, a luz do mundo”. Resplandeça a nossa luz através de nossas obras executadas como sagrado ofício dedicado ao Criador, a fim de que, evidenciada a Boa Nova em nós, glorifique a Humanidade o Criador presente em tudo que existe. Sejamos, pois, nesse infinito devir, a imagem da perfeição relativa, ressumada pelos nossos atos, pensamentos, sentimentos e ações. E o Cristo seja em todos nós.

[1] O Sermão da Montanha é a síntese do pensamento moral de Jesus, modelo e guia da Humanidade, Espírito cuja evolução permitiu-lhe compreender plenamente os princípios da lei divina ou natural, dividida, conforme a Doutrina Espírita, em leis físicas e morais, e, por conseguinte, compreender o próprio Deus. Nesse Sermão, Jesus resume todo o conhecimento que veio trazer ao mundo, exaltando, principalmente, a Ética que a esse conhecimento se vincula. Todo o discurso ressuma esses postulados que elucidam as diretrizes divinas, propiciando aos discípulos do Evangelho um melhor aproveitamento do ensejo educativo que a reencarnação representa. Deve ele ser objeto de meditação e análise de todo profitente do Espiritismo, posto ser a moral doutrinária espírita a revivescência da moral cristã pulcra, sem as máculas que o tempo e as convenções humanas subalternas nele impregnou.[2] Aristóteles estabeleceu a divisão dos conhecimentos em dois tipos, teoréticos e práticos, definindo estarem entre os primeiros os saberes que resultam de coisas que existem e agem sem interferência do ser humano e, em meio aos segundos, os saberes que dependem da interferência humana. Estabeleceu existirem, no âmbito dos conhecimentos práticos, os relacionados ao fazer humano, ou às artes, que os materialistas dialéticos mais tarde denominaram de técnica, e os relacionados ao agir humano, que os mesmos pensadores chamaram de práxis. O que difere o fazer do agir é o fato de, no segundo tipo de saber, haver uma correlação intrínseca, entre o agente, sua ação e respectiva finalidade. Por exemplo, a propagação da verdade, que é uma virtude, com o objetivo virtuoso de propagá-la, demonstra ser o próprio agente virtuoso. A Ética, dirá Aristóteles, é dessa ordem de conhecimentos.

Saturday, August 23, 2008

Aviso

O próximo ensinamento do Cristo a ser analisado será aquele sobre os seus discípulos serem "sal da terra" e "luz do mundo".

Abraço fraternal.

Monday, June 09, 2008

O Ensino Moral do Cristo: Como Jejuar

“Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que eles receberam o seu galardão. Tu, porém, quando jejuardes, unge a cabeça e lava o rosto, com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mateus 6.16-18)


Além do sentido mais analisado nas interpretações acerca desse ensinamento de Jesus, qual seja o que se refere ao convite que o Mestre faz aos discípulos do Evangelho para o jejum dos vícios morais, existem outros argumentos ocultos na simbologia típica de seus discursos, convidando-nos à reflexão sobre a evolução intelecto-moral, bem como à prática desse seu ensinamento imprescindível à segura edificação dos nossos alicerces espirituais, à construção do nosso Eu profundo. O jejum, a unção e a recompensa são termos que aparecem no discurso necessitados de interpretação mais profunda, a fim de se lhes aproveitar todo conteúdo educativo.
No movimento ascensional que todo Espírito realiza, inúmeras são as dificuldades e sofrimentos pelos quais irá passar, principalmente num planeta como o terrestre, de provas e expiações. O sofrimento é resultante das impressões que a matéria (entendida como elemento geral do Universo mas também como categoria filosófica) causa na alma, enquanto esta se encontra reencarnada. A esse respeito, podemos conferir o pensamento luminoso de Léon Denis, em O Problema do Ser, do Destino e da Dor, 18ª edição¹:


"Tudo o que vive neste mundo, natureza, animal, homem, sofre e, todavia, o amor é a lei do Universo e por amor formou Deus os seres. Contradição aparentemente horrível, problema angustioso, que perturbou tantos pensadores e os levou à dúvida e ao pessimismo." (DENIS, 1995)


O pensador emérito faz coro com o Espírito Larcordaire que, no texto Bem e Mal Sofrer, contido no capítulo V de O Evangelho Segundo o Espiritismo, menciona essa mesma contingência evolutiva pela qual passam todos os viventes encarnados na Terra. Lacordaire lamenta, porém, o fato de poucos sofrerem bem, ou seja, de suportarem bem e com dignidade as suas provas. Poucos são os indivíduos que, ao passarem por circunstâncias aparentemente funestas, mantêm uma postura de altivez gerada pela compreensão de ser aquele momento importante para a sua evolução intelecto-moral. A maioria costuma se portar como se estivesse recebendo punição severa do Criador, numa demonstração clara de confundirem sua realidade essencial profunda com o "eu aparente", representado pela persona que ora utiliza. No dizer do filósofo brasileiro Huberto Rohden, não é o Eu profundo que sofre, mas sim o ego periférico, a personalidade presente. O jejum proposto por Jesus não objetiva atender as necessidades do corpo ou da personalidade circunstante, antes serve para exaltar o Espírito. Infantil é o movimento de mostrar às pessoas que estamos jejuando, nesse sentido de auto-exaltação.
O jejum não deve ser confundido com autopunição. É um heroísmo silencioso da alma que, nesse momento, deve avaliar sua real compreensão da vida e das divinas leis. Por intermédio do jejum dos vícios morais, o Espírito, a pouco e pouco, se identifica com sua realidade íntima, suas verdadeiras forças, que é a razão profunda pela qual afirmou o Cristo: “... o que se humilha será exaltado”. A humilhação à qual se refere Jesus é esse movimento de superação das barreiras do ego rumo às dimensões profundas do ser - e isso só é possível quando o indivíduo desenvolve o autoconhecimento. Jejuar é identificar-se com a verdade intima do Espírito imortal que somos todos nós.
Metaforicamente, também recomenda Jesus que o discípulo unte sua cabeça com óleo, ocultando dos homens que jejua, e as razões para isso são simples. Primeiro, aconselha-nos a não buscar no olhar de outrem ou na recompensa pública a aprovação para tal ato virtuoso que, automaticamente e por essa mesma razão, se desvirtuaria. Segundo, diz-nos não ser necessário mortificar o corpo ou a psique para conseguirmos a aprovação de Deus para os nossos atos. O agente regulador da nossa evolução será sempre a nossa consciência, mediadora justa do confronto entre nossas tendências, nossos anseios superiores e nossos condicionamentos primitivos. Sem culpas. Sem radicalismos de qualquer espécie. Portanto, ao jejuar, o ser deve manter uma postura discreta, recatada e precatada quanto às influências do ego periférico. Ungir a cabeça é manter-se em constante comunhão com Deus durante esse sacro exercício de auto-superação.
A recompensa nada mais será que o alcance do autoconhecimento, da compreensão plena dos defeitos e virtudes que possuem todas as criaturas humanas, em regime de auto-avaliação e evolução contínuas. Essa recompensa se dará em público pela revelação do excelente estado de tranqüilidade e paz íntima que aquele que se conhece ilustra nos seus mais sutis atos, gestos, palavras e realizações. Os hipócritas não conseguem realizar esse movimento.
Todo aquele que conhece os princípios das divinas leis, mas mantém com eles uma relação de moralismo superficial e cínico, negando-os em suas ações, age hipocritamente, ilustrando sua debilidade moral. Ao hipócrita ainda satisfazem os mecanismos de justificação engendrados pela persona, bem como o elogio das pessoas acerca dos seus atos, nem sempre vinculados ao Plano Superior da evolução. O hipócrita cria para si uma realidade fictícia, evitando encarar seus demônios internos com coragem e vigor moral. Acomoda-se na mesmice moral e intelectual, contentando-se com os elogios do mundo. A consciência, entretanto, sede da Lei de Deus, mais cedo ou mais tarde, levá-lo-á a aflições que, a partir do próprio âmago, tornar-se-ão insuportáveis. Necessitará, pois, refazer o caminho, buscando a unidade com o Cristo.
Ao nos legar esse ensinamento, suscita-nos Jesus a necessidade de aprimorarmos a nossa fé raciocinada, conclamando-nos à educação integral, a única capaz de gerar em nós hábitos em consonância com as Divinas Leis regentes do Universo.

¹ LÉON, Denis. A dor. In: ___. O problema do ser, do destino e da dor. 18.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1995. p. 371.


O Ensino Moral do Cristo: Introdução

Prezado leitor, introduziremos, a partir desta postagem, a seção O Ensino Moral do Cristo, em cuja qual excertos da Boa Nova serão analisados de maneira contextualizada, sob a luz da Doutrina Espírita e com base na perspectiva e compreensão do próprio autor. A fórmula optada ilustra o seu ponto de vista, não por personalismo, mas por ser a sua aproximação atual e provisória da compreensão sobre o ensino moral de Jesus que nós, Espíritos, só lograremos compreender, plenamente, muito mais tarde.
Não seguiremos um roteiro fechado e linear, que siga a apresentação rigorosa dos ensinamentos de acordo com o arranjo realizado pelos evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João. Faremos, isto sim, a escolha afetiva dos temas, conforme a necessidade ou inspiração da hora, e os comentaremos. Todavia, em toda essa empreitada o mais importante sempre será a participação dos leitores, a fim de que cumpramos com a infra-referida finalidade deste blog, que é o de se estabelecer como um fórum de conversações espíritas. Reiteramos a não-vocação desse espaço para as polêmicas e o debate vazios.
No próximo post avaliaremos, conforme os critérios já estabelecidos, o ensinamento de Jesus acerca da postura individual face à sua lição sobre o jejum (Mateus 6: 16 – 18).

Até lá!

Thursday, November 15, 2007

Lei de Trabalho

A parte terceira de O Livro dos Espíritos apresenta as elucidações dos Benfeitores acerca das leis morais. Essas, no contexto da Doutrina Espírita, são consideradas leis naturais. Portanto, a separação realizada pelo Codificador, apartando fenômenos físicos de fenômenos morais, é simplesmente didática, porque sua raiz é comum: a "Inteligência suprema, causa primária de todas as coisas". Na referida seção, no capítulo III, Allan Kardec ilustrou o resultado do seu diálogo com a equipe do Espírito de Verdade sobre a lei do trabalho. As duas primeiras perguntas formam uma interessante introdução ao assunto:


674. A necessidade do trabalho é lei da Natureza?
O trabalho é lei da Natureza, por isso mesmo que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais, porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.
675. Por trabalho só se devem entender as ocupações materiais?
Não; o Espírito trabalha, assim como o corpo. Toda ocupação útil é trabalho.



No processo de compreensão das coisas, em que o Espírito se põe a dialogar com a matéria, o trabalho consolida-se como instrumento de seu aprimoramento intelecto-moral. Nos reinos inferiores, o então princípio espiritual assimila elementos das leis divinas por intermédio de ações automáticas vivenciadas através das diversas organizações corpóreas que ocupa e, a cada desagregação de algum desses entes, volta ao meio de cujo qual foi tomado, com o acréscimo da elaboração sofrida. Não se sabe precisar ao certo, mas, num dado momento, sofre uma transformação e individualiza-se, ensejando a ocupação do equipamento orgânico humano, o uso progressivo e prioritário da inteligência, em detrimento dos instintos, o desenvolvimento do livre-arbítrio e o conseqüente aprendizado moral.

Nesse percurso evolutivo, o invólucro semi-material do Espírito, chamado por Kardec de perispírito, especializa-se em suprir as necessidades relacionadas à sobrevivência e à perpetuação da espécie humana, engendrando automatismos que serão traduzidos nas ações dos sistemas nervoso simpático e nervoso parassimpático, liberando o Espírito para o uso e desenvolvimento da razão, das emoções, dos sentimentos. Dessa forma, quando os Espíritos assinalam, por abstração, no referido quesito 675, o trabalho intelectual da individualidade espiritual, sublinhando o trabalho material como sendo do corpo, expressam essa realidade evolutiva do perispírito. Este, por sua vez, magnetizando o ente encarnado ou desencarnado e jungindo-o, por conseguinte, à matéria, propicia a transmissão de informações entre as duas dimensões, corpórea e incorpórea, e o aprimoramento da consciência individual, sede da lei de Deus.
O trabalho proporciona ao Espírito, ao longo das reencarnações, firmar o seu senso do EU, compreender o ambiente em que está e suas leis correspondentes e, assim, compreender o próprio Deus, tornando-se, ao fim da jornada, plenamente feliz. Daí ser um contra-senso atribuir ao trabalho a sua dimensão de castigo divino, tão propalada pelas religiões. Em verdade, essa percepção do trabalho como punição impingida por Deus ao homem e à mulher pode ser creditada ao Mito do Pecado Original, da tradição judaico-cristã e ao Mito de Sízifo, da mitologia grega e à cultura da escravidão, entre outros elementos da formação antropológica, psicológica e sociológica das almas. Uma excelente metáfora dessa ótica punitiva é o tripalium, instrumento de trabalho usado na colheita de grãos pelos romanos, mas também de tortura. Esse artefato é resultante da maneira de se pensar e sentir o trabalho como uma punição do Criador. E reforça a falsa visão da cultura helenista de se considerar como trabalho somente as atividades braçais, destinadas aos escravos. Os pensadores eram meros ociosos. (E alguns, pela esquisitice de suas teses, eram bem isso mesmo.)
Hodiernamente, com a mudança radical dos fatores clássicos de produção econômica, que elevou o conhecimento ou capacidade intelectual ao patamar de principal vetor de produção, o trabalho foi ressignificado, não obstante ainda seja impingido, à feição de tortura, a muitos explorados. Bem como artifícios intelectuais de exploração impõe-na sob a máscara torpe da glamourização a sujeitos viciados em trabalho, os workaholics, e outros tantos envaidecidos pela sua ilusão de importância face a organizações que os descartam, muita vez, quais números sem maior significado humano, desde que não atendam mais às necessidades daquelas.
Consideram-se, por exemplo, homens de sucesso executivos que percebem mensalmente milhares de dólares, mas que necessitam, para tanto, trabalhar 12 horas por dia, sacrificando o convívio familiar. A alta conectividade permitida pela Informática tornou a sociedade célere na transmissão de informações; catapultou ainda mais o capitalismo; implodiu barreiras alfandegárias; permitiu a permeabilização mútua de culturas diversas. Por outro lado, a sociedade, utilizando irresponsavelmente esses recursos, produziu mais dados que a capacidade humana de absorção, onerando, com a ideologia do consumo desenfreado, as consciências incapazes de dar conta de toda essa miríade de bits; acirrou as desigualdades sociais; roubou a identidade aos indivíduos. Além disso, esses mesmos aparelhos tecnológicos, como os celulares, os palmtops, notebooks etc., promitentes de maior conforto no desenvolvimento das tarefas aos profissionais, converteram-se em instrumentos de controle da vida destes pelas empresas, que ora exercem um papel controlador outrora previsto e exercido pelo Estado, de acordo, por exemplo, com os pensamentos de Thomas Hobbes (1588 - 1679) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 - 1831) e perpetrado pelas famigeradas ditaduras já vistas na História.
O conceito de trabalho está em crise porque equivocada é a noção de matéria que entretemos em nossas mentes. Ainda imaginamo-la criada por Deus, ou não, para a satisfação de nossos desejos, ilimitados e irrefreáveis. A matéria, no contexto da Criação, "é o laço que prende o Espírito", enquanto este ainda necessita do périplo realizado nos incessantes mergulhos na dimensão corpórea, aprimorando a racionalidade e atingindo a angelitude, pelo exercício dos valores morais dos quais, entre nós, Jesus foi o sagrado portador.
Neste contexto, o trabalho, considerado como toda atividade útil, caracteriza-se por ser instrumento causal de bem estar ao ser humano, à sociedade, ao meio e a todos os seres viventes. "Meu Pai trabalha sempre, e eu trabalho também", assevera Jesus (João, 5.17), contestando a crítica que lhe foi feita por curar no sábado. E Jesus "é o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem para lhe servir de modelo e guia", afirma a Doutrina Espírita. Sua unidade com o Pai demonstra seu nível pleno de consciência das leis naturais.
O trabalho, pois, aperfeiçoando a consciência, será tanto mais fonte de alegrias para o ser, quanto mais este melhor compreender os divinos decretos, resumidos pelo Mestre em "amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo". Quanto mais trabalhar, mais alargará os horizontes de sua consciência. Quanto mais consciente for, mais gozará de livre-arbítrio. O trabalho liberta o Espírito.

Wednesday, January 10, 2007

Jesus: Expressão da Moral Espírita (Primeira Parte)


Que a Doutrina Espírita não é personificada em ninguém todo espírita, neófito ou não, sabe. Entretanto, não há como negar que sua moral o seja. Na questão 625 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec pergunta aos Imortais qual teria sido o Espírito concedido por Deus aos homens para lhes servir de modelo e guia. Responderam-lhe, numa palavra: “Jesus”.
Em verdade, o Cristo personifica a Ética contida nas Leis Divinas e é apresentado pelos Benfeitores como o seu maior intérprete entre nós, em todos os tempos – as perguntas subseqüentes (626 – 627) no-lo mostram. Allan Kardec percebe isso com tamanha argúcia que estabelece, sob a inspiração do Espírito de Verdade, a divisão didático-metodológica do Evangelho, contida na Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, em cinco temas dele componentes: “os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que alicerçaram os dogmas da Igreja e o ensino moral”. Vai dizer ainda que sobre os quatro primeiros temas sempre coube controvérsia, mas quanto ao quinto tema, o ensino moral, não.
Observadas as controvérsias teológicas ínsitas no próprio Cristianismo, percebe-se a correção do pensamento do Codificador. Inúmeras correntes filosóficas cristãs e inúmeras igrejas surgiram das contestações interpretativas relativas aos quatro primeiros temas. Por outro lado, nenhuma delas nega a excelência dos postulados ético-morais revelados por Jesus à Humanidade.
Jesus apresentou-se no cenário histórico de uma civilização que houvera aprendido, durante dois mil anos, a reverenciar as leis mosaicas através dos estudos que eram realizados nas escolas, em regime de repetição. O mnemonismo típico das leituras repetitivas lhes permitia introjetar todo o seu conteúdo legal e heteronômico, mas sem a devida reflexão. Com o passar dos anos, como ocorre a qualquer norma secular, o caráter impositivo desses preceitos foram se mostrando insuficientes para confrontar os desafios impostos pela evolução dos costumes, da historicidade do povo. O descompasso entre regras, muitas delas esdrúxulas para os novos tempos e baseadas no princípio do “olho por olho, dente por dente”, e as novas aspirações geradas pelo progresso intelectual do povo, fez surgir o desconforto predisponente e o ambiente adequado à pregação de Jesus.
Logo João Batista apresenta-o como aquele que batizará os judeus “com fogo e com o Espírito Santo”. Curioso notar que, na Semiótica, ramo da Filosofia que estuda os signos ou símbolos, a luz é a representação do saber, do conhecimento. Então, o Carpinteiro Galileu inicia sua caminhada e suas prédicas, que tinham por finalidade mostrar ao povo que as leis, em verdade, não estavam contidas nos textos manipulados pelos escribas, fariseus e outros intérpretes aproveitadores, que distorciam os ensinamentos, coonestando seu entendimento e escondendo a verdade dos simples. Ilustrava, isto sim, a presença da lei na consciência de cada qual. Seu trabalho foi – e é – o de iluminar consciências. Contudo, não o pôde fazer com uma linguagem direta, por causa do pouco desenvolvimento cultural da época.
Jesus utilizou-se de quarenta e seis parábolas baseadas em eventos comuns do cotidiano do povo, a fim de lecionar os princípios ético-morais de que era portador. Aos seus discípulos explicava-as, dando-lhes a entender que possuíam um nível de conhecimento maior e melhores condições de compreendê-los. Ao povo, porém, não pôde revelar todo o conteúdo dos seus ensinamentos. Prometeu, entretanto, um Consolador que, a seu tempo, re-estabeleceria todas as coisas (João 14: 15 – 17 e 26).
O Espiritismo, a partir de 1857, assume esse papel, apresentando-se como o Cristianismo redivivo, por ilustrar os postulados doutrinários cristãos em sua pureza primitiva. Cumpre o seu papel de atualizá-los, aprofundando conceitos e ensinamentos deixados por Jesus, respeitando e promovendo, como não poderia deixar de ser, seu conteúdo ético-moral como caminho único de compreensão das leis de Deus, da própria Divindade e do alcance, por conseguinte, da felicidade plena.